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A maior virada de vaias em aplausos da história do futebol

Faz 61 anos da maior virada pessoal da história do Maracanã. E do futebol. Julinho Botelho calou a torcida que queria Garrincha com uma atuação espetacular.

Página do livro os 10 MAIS DO PALMEIRAS, Mauro Beting
Página do livro os 10 MAIS DO PALMEIRAS, Mauro Beting

Por Mauro Beting

Fez 61 anos. É preciso fazer a referência devida. A reverência obrigatória.

E como devemos a ele e a muitos que falam como jogam.

A maior - e mais imerecida vaia - que qualquer mortal recebeu ha história do futebol. Ainda mais para um craque que não defendeu o Brasil um ano antes só por ser brasileiro demais. Por isso Julinho não conquistou a Copa de 1958 como merecia. Jogando pela Fiorentina, achou injusto tirar lugar na Seleção de um atleta que estivesse atuando no Brasil, como o ponta-direita Joel (Flamengo) e o gênio botafoguense Garrincha, os escolhidos na posição por Feola para a conquista do Mundial na Suécia.

Justo esse exemplo de pessoa e cidadão não merecia jamais o que ouviu de muitos dos 127.097 torcedores no Maracanã, em 13 de maio de 1959. Primeiro jogo da Seleção no Brasil desde a conquista da Copa de 1958, 10 meses antes.

O Maracanã queria ver Garrincha com a camisa sete amarela no amistoso contra a Inglaterra. Natural, por mais antinatural que tenha sido a vaia que Julinho não merecia. Talvez o treinador Vicente Feola que deixou Mané no banco, possivelmente por questões disciplinares. Boas línguas disseram que chegou atrasado na concentração. As péssimas, a Alegria do Povo de Pau Grande teria chegado mais pra lá de Marrakech que pra cá do Maracanã. Além de não viver tecnicamente grande fase no Botafogo.

O torcedor só soube da escalação de Julinho quando o sistema de som do estádio anunciou.

Foi a maior vaia para uma pessoa física da história do futebol. Não era para o técnico Feola. Era para o ultratécnico Julinho. O maior camisa 7 da história do Juventus, Portuguesa e Fiorentina. Seria até 1967 o melhor também do Palmeiras desde 1914. Para não dizer que foi o melhor brasileiro na Copa-54.

Não se sabe quanto tempo foi vaiado. Tem quem diga que passou dos cinco minutos. Mas bastava um segundo. Quase todo esse tempo de desaprovação cruel ele passou com lágrimas nos olhos. “Minhas pernas tremiam. Como podem ter esquecido o que eu fiz em campo?”

A promessa foi feita ao parceiro Djalma Santos:

- Eles vão engolir essas vaias!

Apupo e apuro injusto para qualquer pessoa. Mas Julinho Botelho era muito mais que uma pessoa física. A alma fez a diferença.

Até o fim da vida, ele garantiu ouvir as vaias:

- Sempre as escuto. Cheguei a ter medo no vestiário. Chorei. No Hino, mal conseguia ver porque as lágrimas me deixavam cego.

Mas quem quis ver, ou até os milhares que não queriam ver o Júlio escolhido, tiveram que o ver pintar e bordar o número 7 de sua camisa amarela contra as camisas brancas inglesas e de todas as cores dos brasileiros que não o respeitaram. Todos em campo e fora dele foram driblados e vencidos como o lateral inglês Armfield. O que teve a incumbência inglória de tentar impedir Julinho Botelho de o debulhar no maior estádio do mundo.

Palco perfeito para a maior virada pessoal do planeta que ele deixou mudo.

Com 2 minutos, outro senhor ponteiro como o são-paulino Canhoteiro foi ao fundo e bateu da esquerda. Julinho apareceu na área e encheu o pé de potência e raiva.

1 a 0 Brasil. 7 a 0 Julinho.

Logo depois do gol, ele passou por dois ingleses como se fossem os guardas da rainha que não podem se mexer. O jogo era dele. Na narração da TV Tupi, “Julinho vai fazendo uma partida realmente espetacular".

Mais um tempo que era todo dele, o moço da Penha paulistana arrancou de novo pela direita, no seu estilo impetuoso de peito inflado (não empinado), confiante e jamais confinado apenas a um lado, ousado sem ser prepotente, potente e habilidoso. Moeu o lateral inglês na corrida e aos dribles. Quando o goleiro Hopkinson foi interceptar o cruzamento provável é inevitável, Julinho fintou a Inglaterra e jogou a pelota no contrapé. A bola bateu no pé da trave.

Não foi gol. Mas foi a senha para a sanha da turba virar o jogo e a vaia. Julinho era da nossa turma. Em menos de 15 minutos ele já era o aplauso que mereceu desde 1950 no Juventus, 1951 na Portuguesa, 1952 na Seleção, 1955 na Fiorentina, 1959 (até pendurar as chuteiras em 1967) no Palmeiras.

Aos 28 minutos driblou uma vez (pela enésima vez) Armfield, duas vezes fez o que quis contra Clayton e contra quem não o quis nem pintado de verde-amarelo na ponta, e achou livre Henrique Frade para ampliar.

Gol de carrinho do centroavante brasileiro. Parecido com os dois da virada de Vavá na final de 1958 contra a Suécia. Dois lances então do ponta Mané Garrincha.

Substituído à altura até nisso por Julinho.

⁃ Se eu estivesse na suplência de Garrincha, eu estaria igualmente honrado de servir a Seleção. Mas aquelas vaias mexeram demais comigo. Foi a maior mágoa que tive. Como podem ter me esquecido assim? Mas aquela dor me fez jogar ainda mais. E consegui ter uma das maiores atuações e emoções de minha carreira.

Julinho tinha reconquistado o Maracanã. Em seguida ele dribla dois mais uma vez, quatro então o cercam, e ele levanta a bola de colherinha buscando Henrique. O estádio vem abaixo. Agora ao lado dele.

Logo depois ele sai trocando passes com Pelé até levantar de bico de chuteira para o Rei. Parecia irreal. Coisa de cinema.

Mas é tudo Julinho.

Ricardo Serran, em O GLOBO, disse na edição do dia seguinte que, naquela tarde, até Pelé e Canhoteiro foram vaiados pelo torcedor. Mas a perseguição contra Julinho foi demais. “Em 15 minutos já tinha virado a vida em aplauso. Ele é o maior ponta-direita de nossa história!”

Para o sofredor lateral Armfield, companheiro da lenda pela ponta Stanley Matthews (no English Team e no Blackpool), “Julinho é o ponta-direita mais completo do mundo. Ele passa muito bem, ele dribla otimamente, ele chuta muito forte, ele atua com muita firmeza, mas sempre com lealdade”.

O jornalista do L’ÉQUIPE escreveu que na “na terra de Garrincha ainda tem o melhor ponta do mundo - Julinho”.

Comentários no dia seguinte diziam que o Brasil tinha dois Garrinchas.

Bastaria uma ave rara como Julinho.

Este é o cara é o craque que virou nome de escola na Penha, em São Paulo, onde todas as homenagens ainda serão poucas pelo muito que fez, como craque, atleta e pessoa.

Muito melhor ler Nelson Rodrigues, em texto publicado em a “Manchete Esportiva”, a respeito da partida que completou 61 anos em maio, e ninguém pode esquecer como esqueceram Julinho naquela tarde.

O melhor cala-boca da historia. Falando pela bola. Sem levantar orelha pra torcida. Apenas levantando a torcida com seu jogo.

Escreve Nelson:

“Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da semana a partir do momento em que o vaiaram. Foi, até, se me permitem a expressão, trágico. Insisto: trágico! Quem estava lá viu ou, por outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma vaia só. Menos eu. Eis a verdade: - eu não apupei, embora preferisse Garrincha. Parecia-me que o escrete sem o “seu” Mané era um mutilado. Na pior das hipóteses, eu achava que o Feola devia ter posto os dois: - Julinho na ponta direita e Garrincha na esquerda.

Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só Julinho e esqueceram o Garrincha. Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã e fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim, amigos: - o homem andou pela Itália e quando voltou nós o olhamos, de alto à baixo, como se fosse um gringo qualquer ou pior do que isso, como se fosse um perna de pau. Não há nada mais relapso do que a memória. atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras. Por exemplo: - ninguém se lembrava de que, no mundial da Suíça, contra os húngaros, Julinho fizera um carnaval medonho. De certa feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba e que bomba!

O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a admiração pateta dos visitantes. Pois bem: - ao ser anunciada a escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do escrete.

Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo. Imaginei o seguinte vaticínio:

- “Julinho vai comer a bola!”

Podia parecer uma piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a verdade: - para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Julinho a de ter entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifico, às chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra duzentos mil. Mas homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: - bateu-se contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a crucificá-lo em outras vaias. Mas se nós tínhamos e esquecido Julinho, Julinho não estava esquecido de si mesmo.

Foi Julinho em cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em inúmeras ocasiões o que ele fez com o adversário foi pior que xingar a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de uma maneira, por assim dizer, sádica. Jamais houve um gol tão amorosamente sofrido como este. A partir da abertura da contagem, todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si mesmo:

- “Este é o Julinho !” E era.

Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra ele como um touro enfurecido. Pois bem: - ele agarra o touro a unha e lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo, já manso, tornou-se em outro bicho. Sim, amigos: - do primeiro gol em diante, a multidão transformou-se a “macaca de auditório” de Julinho. Se ele apanhava a bola, os duzentos mil espectadores arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que o Julinho iria fazer.

Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: - de um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido, transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de carnaval. De certa feita, como um, dois, três, quatro e quase entra com bola e tudo. Imagino que, neste momento, Lord Nelson há de ter perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de eternidade:

- “Quem é esse cara ?” O “cara” era Julinho, sempre Julinho.

Assim é o brasileiro de brio. Dêem-lhe uma boa vaia e ele sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de Julinho foi exatamente isso: - um milagre de futebol”

O GLOBO, 14 de maio de 1959

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