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Santos, há 108 anos sempre Santos

Um campeão mundial de uma cidade que nem capital de seu Estado é.

Pelé só podia jogar no Santos. O Santos fez tudo isso até sem Pelé.

O Santos que goleou o Benfica em 1962
O Santos que goleou o Benfica em 1962

Por Mauro Beting

Às margens do Atlântico Sul, Mário Ferraz, Argemiro de Souza e Raymundo Marques fundaram um clube na noite de 14 de abril de 1912. Horas antes de, mais ao Norte, o “insubmersível” RMS Titanic atingir um iceberg e, horas depois, afundar e deixar 1.517 mortos.

Os três dos 39 presentes à reunião sonhavam formar o maior clube de futebol da cidade. Foram além. Criaram o primeiro clube realmente globalizado do Brasil. Para não dizer do mundo. “Nenhuma equipe antes havia jogado em todos os continentes como o Santos. O Real Madrid era um time espetacular, mas raramente se exibia fora da Europa. O Santos jogou em todo o mundo. Porque tinha o melhor espetáculo para vender e porque ganhava mais dinheiro fora do que dentro do Brasil”, explica o escritor José Roberto Torero, autor de dois livros a respeito do clube. Para o locutor de TV Raul Tabajara, o Santos era o Globe-Trotters do futebol.

O clube do “Pelé do futebol” - o próprio Pelé. O time de futebol que mais gols fez no planeta – mais de 12.600 até fevereiro de 2020. O único com duas sedes – Santos e a capital São Paulo. O maior campeão no planeta de uma cidade que não é capital nem da província. O primeiro a marcar 100 gols (em apenas 16 jogos) no Campeonato Paulista de 1927. Um clube que não precisaria de Edson Arantes do Nascimento para ser quase tudo isso.

Uma equipe que foi montada várias vezes para desmontar os rivais com filhos da terra e monstros das areias vizinhas como Millon e Arnaldo (fundadores do clube que seriam campeões pela Seleção já em 1914), Araken, Antoninho, Pepe, Del Vecchio, Pagão, Joel Camargo, Pita, Robinho. Uma escola que multiplicou peixinhos de outras águas como Zito, Coutinho, Lima, Mengálvio, Toninho Guerreiro, Edu, Clodoaldo, Manoel Maria, Aílton Lira, João Paulo, Juari, Giovanni, Diego, Neymar, Ganso, Gabriel Barbosa. Um clube que soube comprar pelo Brasil ídolos como Feitiço, Tite, Jair Rosa Pinto, Calvet, Dorval, Gilmar, Mauro, Carlos Alberto Torres, Rildo, Djalma Dias, Serginho Chulapa. Um time que garimpou pela América nomes como Ramos Delgado, Cejas, Rodolfo Rodríguez e Rincón para fazer o mundo cheio de gols e de outros Santos. Mais de cem entre clubes amadores e profissionais. Tem em Guiana, Burkina Faso, África do Sul, México. Tem em Viana, Angola. Que traz no escudo a frase: “Um Clube com Actos de Nobreza e Paz”. Lema que poderia ser do Santos brasileiro quando parou um conflito civil na África só para a banda de Pelé passar, em fevereiro de 1969. Na Cidade de Benin, no Sul da Nigéria, a Guerra de Biafra deu trégua de alguns dias para que o Santos vencesse um selecionado local por 2 a 1 e pudesse deixar o país para jogar em Gana.

O Santos nem sempre honrou o nome. Colômbia, 1968. Jogo contra o Millonários, em Bogotá. O árbitro, um ex-pugilista, nocauteou um santista que foi reclamar da arbitragem caseira. Todo o elenco entrou na briga contra trio de arbitragem e repórteres colombianos. Metade do time só sairia da delegacia depois de pedir desculpas para o árbitro. Ganharam o jogo, mas perderam o voo de volta depois de semanas viajando pelo continente.

Era assim desde 1954. Quando o Santos pela primeira vez saiu do país para faturar 221 mil cruzeiros em oito jogos pela Argentina. No ano seguinte, fez sete jogos pelo continente e venceu seis. Faturou mais que o dobro do ano anterior. O que pagava mais de duas vezes o salário do elenco que, em 1955, ganhava o terceiro título estadual. Já tinha Zito e Pepe. Mas ainda não tinha Ele, que viria de Bauru em agosto de 1956. Pelé já era campeão do mundo com 17 anos quando pela primeira vez excursionou com o Santos, em janeiro de 1959. Doze vitórias em 13 jogos pela América. Em abril, a estreia na Europa. Com a excelente cota de 25 mil dólares por partida. E que espetáculos! Em 21 jogos, 12 vitórias, e apenas quatro derrotas. Exibições como os 7 a 1 na Internazionale de Milão, 6 a 0 no Hamburgo, e 5 a 1 no Barcelona. Não por acaso o time fechou o ano com absurdos 342 gols marcados. Só Pelé marcou 102. Deles, 42 nos 36 jogos internacionais do Santos pelo mundo só em 1959.

“Era um entra e sai de avião impressionante”, lembra Pepe. “Estávamos tão acostumados a jogar fora de casa que tinha gente que se sentia no Brasil. O Coutinho, por exemplo. Estávamos num bar na Alemanha e o maestro da orquestra atendia aos pedidos. Nosso centroavante não gostou de não ter ouvido a canção que havia sugerido. O Coutinho queria que a banda tocasse ´O Pretinho Gostou da Filha da Madame´”.

Lima, curinga da equipe, jogava em todas as posições. Como o time jogava dia sim e dia não nas excursões. “Treinávamos nos aviões”. As cotas eram cada vez maiores a partir de 1960, quando se estabeleceu a rotina de viagens e (shows) em janeiro e fevereiro pela América; maio e junho na Europa, quando não alguns jogos em agosto e setembro. No livro “Time dos Sonhos”, o jornalista Odir Cunha relata que, numa das partidas, o time dividiu uma caixa de chocolate no avião, uma de maçã no vestiário, e venceu quem veio pela frente. “A Seleção campeã mundial em 1958 abriu as portas para o Santos de Pelé na Europa. Mas o que aquele time jogava e goleava abriria as portas do futebol brasileiro em todo mundo por muitos anos. Fora a Antártida, o Santos jogou em todos os continentes.”.

Em 1961, foram 38 jogos internacionais – 26 vitórias. Entre elas o 6 a 3 no campeão europeu, o Benfica de Lisboa. O show de bola e gols atraía cada vez mais gente. Pelo mundo todo. São 33 recordes de público e 47 de renda em jogos do Santos pelo planeta. O clube faturava alto. Mas cobrava demais dos atletas. “Em 1962, em Paris, logo depois do título mundial conquistado em Portugal, eu tive de jogar com uma lesão muscular na coxa. Fazia parte do contrato com o Racing. A cota seria menor se eu não jogasse. Mal corria. Só batia faltas. E fiz dois golaços. Até o torcedor francês queria me ver cobrando faltas. Eles gritavam ´Pepê, Pepê´. Acho que era eu” [risos].

No mesmo ano, contra o Racing campeão argentino, antes de ganhar a primeira Libertadores, o Santos mostrou o que faria em 1962. Goleou o time em Avellaneda por 8 a 3. “Contra o Santos, nem o diabo”, decretou um jornal argentino. Alguns meses depois aqueles diabólicos brasileiros ganhariam do Peñarol a Libertadores, em campo neutro, em Buenos Aires, partindo para a conquista do mundo pela primeira vez.

Fechando 1962 com inacreditáveis 216 gols marcados em 64 jogos. E apenas 60 sofridos. Campeão estadual, brasileiro, continental e mundial. Feito ainda imbatível numa só temporada.

No meio de 1962 o Brasil seria bicampeão mundial, no Chile. Com sete jogadores do Santos. Em 1963, a Seleção impediu que o clube faturasse mais dinheiro por algum tempo. Nove jogadores serviam o país. Oito deles formaram no time que pela primeira vez venceu a Alemanha. Logo depois estavam todos reunidos para seguir excursionando com o Santos pela Europa. Quase todos brigando para estar no mesmo avião de Pelé. “Muitas vezes pintavam convites durante a excursão. A diretoria então tinha de se virar para acomodar a delegação em vários voos. E todo mundo brigava para estar ao lado do Pelé. Sabíamos que nada aconteceria no avião dele”, conta Zito.

Não eram só os companheiros que o marcavam de perto no avião. Em 1964, no Chile, um repórter de rádio o acompanhou até dentro do cinema, e narrava as reações de Pelé durante o filme... Ele não podia sair do hotel. Muito menos do time. Sem Ele, a cota caía drasticamente. A partir de 1970, começou a receber 10% da cota que o clube recebia. Quantia que era mais que o dobro que qualquer outro clube recebia numa época em que o calendário dava liberdade aos clubes de viajarem para ganhar dinheiro. Os torneios continentais não pagavam tão bem. Tanto que o Santos preferiu não disputar as Libertadores de 1966, 1967 e 1969 para faturar mais correndo o mundo atrás da bola. África, a partir de 1967. Ásia, em 1970.

O time ganhava quase tudo que o clube perderia em investimentos mal realizados e, também, histórias mal contadas e contas mal feitas. Em campo, não havia dúvida da qualidade santista. O Real Madrid, o Santos europeu, o grande campeão continental do século XX, uma vez ganhou o duelo, em 1959. Foi 5 a 3, em Madri. Depois, nunca quis saber de enfrentar o Santos. Em 1965, desistiu de disputar um título em Buenos Aires só para não enfrentar a turma de Pelé. Como a Internazionale, depois de perder a primeira partida da Recopa intercontinental em Milão, deixou o Santos levar a taça para o Brasil, sem a revanche, em 1969. Quando o clube encerrou impressionante série de 27 títulos oficiais em 15 anos.

Em 1º de abril de 1962, 53 jornais europeus publicaram a contratação de Pelé por clubes locais como brincadeira de Dia da Mentira. Parecia mesmo. Os números reais pelo clube são de espantar: marcou 1091 gols em 1116 jogos. Nos 18 anos de Pelé no Santos, a equipe marcou 3116 gols e sofreu 1484. Foram 723 vitórias, 202 empates, e 191 derrotas. Pela pontuação de hoje, seriam mais de 70% de aproveitamento.

Em 1970, cinco santistas ajudaram o Brasil a ser tricampeão mundial com a Seleção. A Era de Ouro do tri mundial brasileiro combinou com a ascensão e queda alvinegra. Em 1971, Athiê Jorge Curi deixava o comando do clube depois de 26 anos como presidente. Em 1972, os rivais nas turnês pelo planeta já não eram tão fortes. Em 1973, mais países desconhecidos. Mais arbitragens confusas. Como o inglês de Pepe, então treinador da equipe. “Num jogo em que fomos garfados na Inglaterra, falei pro árbitro: ´Respect me! I´m twice world Champion! And you are uma bosta!”

No ano seguinte Pelé deixaria o clube. O Santos deixaria de correr tantas vezes o mundo. Mas, desde então, ninguém o superou na América. São mais de 600 jogos internacionais desde 1954. Mais de 70 países visitados. Pepe: “Nós até pudemos ensinar futebol a muitos deles. Mas também aprendemos muito. Ao menos quem quis aprender. Em 1961, em Israel, enquanto a maior parte da delegação foi a um bordel, alguns poucos foram visitar Nazaré. Pena que entre eles estava um companheiro que achou a maior roubada ir a uma cidade onde só tinha poeira e pedras...”. Para o clube que desistira do Campeonato Paulista de 1913 por não ter dinheiro para ir para a capital de trem, o mundo a partir dos anos 50 parecia do tamanho da praia de Gonzaga.

O Santos subiu a serra e fez o planeta pequeno como se fosse uma rua estreita próxima à Vila Belmiro. “Um clube de uma cidade média, mas voltada ao mundo através do porto, tem essa vocação natural. Dá um certo charme ao Santos esse lado provinciano”, entende Torero. “Se o time nasceu em uma cidade menor e tem muito mais torcedores fora de sua sede, algo extraordinário ele fez”, diz Odir Cunha. Fato: dois Mundiais de Clubes, em 1962 e 1963. Três Libertadores da América (em 1962 e 1963, quando o Santos ganhou todos os nove títulos que disputou de dezembro de 1961 a novembro de 1963), 27 torneios internacionais. Foi o maior da melhor época do futebol brasileiro e mundial – e não apenas por Pelé. “O time que ficou 45 minutos sem tocar os pés no chão”, na definição da imprensa portuguesa para o esquadrão que goleou por 5 a 2 o Benfica, em 1962, em Lisboa, na conquista do primeiro mundial. A melhor imagem do maior time do mundo então. Quem sabe o melhor de todos os tempos e campos.

Parece estar no estatuto não escrito do clube o gosto pelo gol, o apreço pelo apuro sem preço. O Santos virou reverente referência. É um patrimônio que ficou por mau tempo tombado, sem títulos, entre 1984 e 2002. Mas que no início dos anos 2010, honrando a tradição, se reinventou e se renovou com os Meninos da Vila Reloaded 3.0. O Santos não é só dos santistas. É de quem lotou o Maracanã para vê-lo bi mundial. É de quem encheu o Pacaembu em 2011 para vê-lo tri da Libertadores. É de um time com sede de gol e com várias sedes para recebê-lo. Uma equipe de deuses, santos e anjos que jogou o diabo de bola. O clube que honrou todos os Santos e todo o futebol brasileiro e mundial. O 14 de abril de 1912 não deveria ser lembrado pela tragédia da companhia marítima White Star. O esporte precisaria louvar eternamente a estrela branca que surgiu nos campos naquela noite.

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