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Uniformes no esporte: a desigualdade de gênero em evidência

Em entrevista exclusiva com as atletas Cinthya Piquet, do handebol de areia, e a ginasta alemã Elisabeth Seitz, analisamos como a diferença dos uniformes de homens e mulheres pode revelar as raízes machistas do esporte

Quando estão lado a lado, é possível visualizar o contraste entre os uniformes destinados a homens e mulheres
Quando estão lado a lado, é possível visualizar o contraste entre os uniformes destinados a homens e mulheres (Federação Norueguesa de Handebol)

Por Larissa Carvalho

Pierre de Fredy, também chamado de Barão de Coubertin, foi o responsável por retomar os Jogos Olímpicos na Grécia, no ano de 1896. Para ele, o ambiente de competição deveria exaltar a força, o poder e a masculinidade do homem. Ou seja, não cabiam mulheres. Para se inserirem neste espaço de competitividade, a sociedade patriarcal envolveu-se em um discurso de embelezamento do corpo da mulher, tanto para deixá-las “mais femininas” aos praticarem os desportos, quanto para apreciá-las e, então, legitimá-las dentro das competições.

O presente reflete o passado

Algumas crônicas brasileiras, inclusive, retratam bem essa ideia. Afinal, a mulher no esporte serviria para propiciar aos homens uma experiência de contemplação do belo e não para serem referências de qualidade, técnica e habilidade. Armando Nogueira, ao escrever sobre os calções das atletas de basquete na obra “Magic Paula”, avalia a roupa da ex-atleta brasileira: “Não merece uma roupa tão bizarra. Nem ela, nem os olhos masculinos nascidos para a contemplação do belo”. Já na crônica “A quadra e os quadris”, o narrador considera que os shorts das atletas de voleibol eram “sensuais” e "atiçavam as fantasias do homem.”

Os resultados disso são sentidos até hoje, nos collants cavados, nos macacões colados já usados no basquete e no vôlei, nas minissaias de pano, nos sunquínis dos esportes de areia, nos laços e nas maquiagens muitas vezes impostos. Como se não fosse o bastante, também é possível notar os resquícios de uma mentalidade ultrapassada, sustentada por discursos retrógrados, quando as tentativas de mudança são repreendidas, asseguradas por explicações esportivamente infundadas.

Mesmo no vôlei de quadra, mulheres já usaram biquínis na parte de baixo do uniforme | Getty Images
Mesmo no vôlei de quadra, mulheres já usaram biquínis na parte de baixo do uniforme | Getty Images

Os uniformes e os burburinhos: tentativas em vão?

Em julho deste ano, durante a disputa pela medalha de bronze no torneio europeu, o time feminino de handebol de areia da Noruega decidiu usar shorts, ao invés dos tradicionais sunquínis — popularmente considerados biquínis. Por terem rompido com as regras impostas pela Federação Europeia de Handebol (EHF), as atletas foram multadas em cerca de R$ 928 reais cada uma. Em nota oficial, a organização disse que “o assunto já foi discutido no Congresso da EHF em abril de 2021 em uma moção da Federação Norueguesa de Handebol”. O presidente da EHF, Michael Wiedererer, juntamente com o presidente da Federação Internacional de Handebol (IHF), Dr. Hassan Moustafa, prometeu se esforçar para dar os próximos passos na ação movida de modo a promover ainda mais o esporte, incluindo o debate sobre os uniformes.

As atletas de handebol de areia da Noruega decidiram utilizar shorts, ao invés do sunquíni | Reprodução/Instagram
As atletas de handebol de areia da Noruega decidiram utilizar shorts, ao invés do sunquíni | Reprodução/Instagram

A respeito desse episódio, nossa reportagem conversou com a atleta de handebol de areia, 4x campeã brasileira e 6x campeã do mundo, Cinthya Piquet. Aos 36 anos de idade e praticante do esporte há 17 , ela se mostrou surpresa com a atitude do time feminino noruguês e atribuiu a iniciativa do movimento a meninas recém-chegadas ao time: “Foi uma surpresa porque ao nosso ver elas já estavam adaptadas a isso. Acredito que tenham sido algumas meninas novatas, que entraram agora na seleção e que elas não estavam adaptadas. Porque é uma equipe que já joga há muito tempo, é uma equipe boa, muito grande e que a gente nunca tinha visto algo desse tipo.”

Mas a verdade é que a atitude das norueguesas já havia tido precedentes aqui no Brasil. Em 2017, a equipe carioca CopaBeach/CEPRAEA foi ameaçada perder por W.O caso jogasse com shorts por debaixo dos sunquínis na segunda etapa do campeonato estadual. Como repúdio à tentativa de retaliação sofrida por parte da Federação de Handebol do Estado do Rio de Janeiro, as atletas se pronunciaram nas redes sociais:

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À época desse caso, a equipe masculina também se posicionou contrariamente à atitude da federação estadual. A desigualdade dos uniformes fica refletida quando a regra para os homens consiste no uso de shorts e regatas, enquanto as mulheres ficam restritas aos sunquínis: uma exposição desmedida dos corpos femininos quando comparados aos corpos masculinos. Afinal, os homens não usam sungas — o que seria mais próximo da equivalência aos populares “biquínis” utilizados pelas mulheres.

Cinthya recorda o ano de 2009 como um divisor de águas nas regras de vestimenta do handebol de areia. Até então, segundo ela, as atletas utilizavam shorts, mas a “marquinha de Sol” que a roupa deixava era indesejada. “A gente nunca tá satisfeita com tudo né, sempre reclama”, disse. Assim, estabeleceu-se um novo padrão para competições oficiais, que formalizou e regulamentou o uso dos sunquínis. Essa mudança levou a outro debate, já que durante os movimentos do esporte, como os giros e saltos, as meninas se sentiam muito expostas. A paraibana foi uma das primeiras atletas a testar o novo uniforme, mais curto do que o antigo, e relembrou a sensação de estar inaugurando-o oficialmente:

"Eu fui a cobaia. Era eu girando e dez meninas atrás olhando minha queda pra ver como funcionaria, como seria aquela visão. No começo foi um pouco difícil, porque o pessoal tinha um pouco de vergonha. E no final das contas todos se adaptaram."

Em Tóquio, o mundo viu


Durante as Olimpíadas de Tóquio, outra situação similar chamou a atenção dos espectadores. O time feminino de ginástica artística da Alemanha se apresentou com calças, no lugar dos tradicionais collants. Em entrevista exclusiva à TNT Sports, a ginasta Elisabeth Seitz revelou a motivação para que ela tomasse a iniciativa juntamente com as colegas de equipe Sarah Voss, Kim Bui e Pauline Schaefer-Betz:

Não somos mais meninas, somos mulheres. Mulheres que sabem o que gostam e o que não gostam. Foi assim que começamos a falar sobre o que gostamos na ginástica e o que não gostamos. Chegamos à ideia de que não gostamos de sempre vestir os collants porque talvez pareça bonito, mas nem sempre nos sentimos confortáveis."

Diferentemente das atletas da Noruega, elas não receberam multa nem represálias por parte do comitê olímpico, já que o uso do uniforme é permitido. Elisabeth não escondeu a satisfação com a repercussão positiva das calças e enfatizou que a maioria dos comentários negativos chegaram até elas por meio de homens, que as consideravam “menos sexy” com o corpo mais coberto:

Alguns dos comentários negativos vieram da parte dos homens, que disseram que gostam mais dos collants porque eles podem ver mais da nossa pele e é mais sexy. Eu disse que não é sobre ser sexy nos saltos, é sobre mostrar o quão boas nós somos nos saltos ginásticos, a ginástica é tão linda de assistir, que não importa o que estejamos vestindo. Acho que os comentários negativos vindos dos homens nos mostraram que tomamos a decisão correta."

Constrangimentos, repercussões e implicações

Em relatos de jogadoras de esportes de praia, por exemplo, é comum ouvirmos reclamações a respeito da quantidade de areia que entra nas partes íntimas por conta da roupa que pouco oferece proteção à região, e não só causa desconforto físico, como também o aumento da propensão a doenças. A insegurança pessoal em determinados períodos biológicos, como durante a menstruação, também pode agravar-se quando a mulher atleta se sente desconfortável com a exposição a qual lhe foi imposta. Mas também há a normalização de fatores externos às atletas, que se perpetuam a partir de perspectivas machistas de posse do corpo feminino, como comenta Cinthya sobre o assédio de fotógrafos:

Existem fotógrafos que ficam lá só para isso (tirar fotos desagradáveis de mulheres). Tem vídeo só disso, que só tem bunda, só tem partes íntimas de mulheres. É uma coisa super chata, não é legal. Uma vez saiu uma foto dessa de uma colega e um dos meninos colocaram em nosso grupo da seleção. A foto era do fundo dela, ela estava toda aberta porque caiu para pegar uma bola. Qual a necessidade de você fazer isso? Pra que fazer isso? Isso é muito chato e os próprios amigos da gente que fizeram isso. Só que acaba que você se acostuma.”

Como a sociedade impõe à mulher o “costume” com tal situação, as imagens continuam sendo capturadas e amplamente circuladas com normalidade. Cinthya, inclusive, revela que veículos de imprensa consideram o handebol de areia feminino "mais vendável" para ser transmitido. Elisabeth também não escondeu já ter sido alvo dessas práticas maldosas. Uma vez, conta ela, uma matéria selecionou uma foto cujo foco estava entre as pernas dela. Inconformada com a situação, Elisa decidiu entrar em contato com o veículo. “Ei, vocês podem fazer tantas fotos boas de mim, praticando ginástica, por que escolheram a foto que expõe o meio das minhas pernas? Isso não é legal.”, reclamou. Depois disso, eles modificaram a imagem.

A EHF divulgou em nota que a multa recolhida das atletas norueguesas por causa do uniforme foi doada integralmente uma fundação esportiva internacional que apoia a igualdade para mulheres e meninas no esporte. A federação também acrescentou estar “muito ciente da atenção que o tema recebeu nos últimos dias” e que está “plenamente comprometida que algo de bom saia dessa situação” e doaram a multa para "promover a igualdade no esporte."


"O que debati com algumas pessoas é que se deixarem em aberto não vai funcionar. Não vai ser legal nem pra nossa modalidade, como visibilidade, como crescimento, TV, patrocinador… Não vai ser legal. Se eles abrirem para o que é mais confortável, eles têm que dar no máximo duas opções, ou sunquíni ou short. E pronto. Ou uma equipe usa inteiro um short ou a equipe usa inteiro o sunquini. Mas usar o que deixa mais confortável… Então eu vou usar calça, tu vai usar short, tu vai usar bermuda… Vai ficar uma bagunça e isso pra modalidade não vai ser legal”, conclui Cinthya.

Religião e clima: alternativas

Em ambos os esportes, não há regras bem definidas em caso de meninas que por dogmas religiosos não podem expor o corpo, o que de certa forma as afasta da prática esportiva. Na Rio 2016, as atletas egípcias de vôlei de praia Doaa Elgobashy, de 24 anos, e Nada Meawad, de 23, vestiram um véu, chamado de hijab, e calça para poderem participar da competição de modo a não escandalizar a religião que elas seguem. A alternativa de vestimenta favoreceu a participação da dupla no evento olímpico e promoveu a inclusão das duas mulheres islâmicas no esporte. Quanto às condições climáticas, o handebol de areia libera o uso de roupas térmicas em caso de dias frios e/ou chuvosos. A exigência, porém, é que todas vistam-se igualmente, tanto na cor, como no tamanho.

Doaa Elgobashy, de calça e hijab, e Nada Meawad, de calça, durante as eliminatórias do vôlei de praia contra a Itália, na Rio 2016 | Ezra Shaw/Getty Images
Doaa Elgobashy, de calça e hijab, e Nada Meawad, de calça, durante as eliminatórias do vôlei de praia contra a Itália, na Rio 2016 | Ezra Shaw/Getty Images
No handebol de areia, em condições climáticas desfavoráveis, as jogadores podem utilizar roupas térmicas | Reproução/Instagram Cinthya Piquet
No handebol de areia, em condições climáticas desfavoráveis, as jogadores podem utilizar roupas térmicas | Reproução/Instagram Cinthya Piquet

Ao ser questionada sobre qual mensagem gostaria de deixar para as pessoas, Elisabeth foi segura ao responder:

Nossa mensagem foi dizer que não importa o que você veste, desde que você se sinta confortável e isso é tudo. Você precisa se sentir confortável. Quando você se sente confortável, você pode fazer os pontos e uma ótima ginástica, porque você se sente confortável naquele uniforme. É simplesmente a sua decisão. Isso é tudo que queríamos dizer e compartilhar.”

Basta um clique para eternizar uma exposição desnecessária. Ou para clarear as diferenças de tratamento. Quando o considerado normal é questionado, é possível entender o papel ao qual a mulher foi historicamente inserida dentro do esporte. Daí então se explica a existência de uniformes curtos para elas. Também passam a ser normalizadas as fotografias desrespeitosas. O esporte, assegurado em suas raízes machistas, deixa de ser lar e se torna uma preocupação: não há escolhas, nem alternativas para as mulheres. Só há diferenças cuja simples materialização está estampada nas roupas que lhes são designadas.

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